A história do triciclo de Shinichi

Por Alexandre Inagakidomingo, 09 de agosto de 2015

O céu azul e a manhã banhada de sol pareciam ser o prenúncio de um dia agradável. Na frente do quintal de casa, Shinichi Tetsutani, um garotinho japonês de 3 anos e 11 meses de idade, brincava com seu triciclo na companhia de Kimi, sua melhor amiga, sob o olhar de vigília de Nobuo, seu pai. Na casa, que também sediava a farmácia mantida pela família, moravam cinco pessoas além de Shin: seus pais, sua avó, sua irmã mais velha, Michiko, de 7 anos (com quem foi retratado na foto ao lado) e sua irmã caçula, Yoko, de 1 ano de idade.

Às 8 horas e 14 minutos daquela manhã, o som ouvido por Nobuo era das risadas de Shinichi e de sua amiguinha brincando lá fora, misturadas com o canto das cigarras que ficavam nas árvores em torno do bairro. Um minuto depois, porém, um imenso clarão de luz inundou a casa, seguido por enorme estrondo e violentos rompantes de ventos coruscantes destroçando tudo ao redor. Em meio aos escombros que restaram de sua casa, Nobuo levantou-se para amparar sua esposa, que estava na cozinha. Foi a avó de Shin a primeira pessoa a encontrá-lo caído no quintal, debaixo de uma viga, com o rosto sangrando e inchado. Gemendo e com a voz abatida, Shin pedia para beber água. Nobuo olhou ao redor: por todos os lados o que se via era um cenário apocalíptico. Casas queimando, corpos no chão, pessoas chorando, gritando, agonizando.

O mundo nunca mais seria o mesmo após aquela manhã de 6 de agosto de 1945, quando uma bomba nuclear foi lançada sobre a cidade de Hiroshima, matando cerca de 80 mil pessoas só naquele dia. Shinichi não sobreviveu àquela noite. Suas irmãs haviam falecido antes, quase que instantaneamente após o ataque. Nobuo, ainda atordoado e não aceitando a ideia de deixar seus filhos distantes de casa, acabou por enterrá-los em seu quintal. Shin foi enterrado de mãos dadas com sua amiga Kimi, na companhia de seu triciclo.

Quarenta anos depois, no verão de 1985, Nobuo e sua esposa decidiram transferir os restos mortais de seus filhos para um cemitério. Na presença da mãe de Kimi, os corpos foram exumados. Os esqueletos de Shin e Kimi foram encontrados com as mãos dadas, exatamente como tinham sido enterrados. E o triciclo, após ter feito companhia aos despojos das crianças por quatro décadas, foi doado pelo pai de Shinichi para o Memorial da Paz de Hiroshima, a fim de que aquela história pudesse chegar ao conhecimento de mais pessoas.

Em agosto de 2015, o mundo recordou mais uma vez as tragédias que mataram cerca de 220 mil pessoas nas cidades de Hiroshima e Nagasaki, narradas por obras como Black Rain - A Coragem de uma Raça (um dos mais belos e tristes filmes que já assisti). Espero, no entanto, que este mundo cada vez mais desmemoriado não se permita esquecer dos erros que vitimaram pessoas inocentes como Shinichi e sua família.

P.S.: Obrigado, Diorela, por ter me recordado desta data.

Pense Nisso!
Alexandre Inagaki

Alexandre Inagaki é jornalista, consultor de projetos de comunicação digital, japaraguaio, cínico cênico, poeta bissexto, air drummer, fã de Cortázar, Cabral, Mizoguchi, Gaiman e Hitchcock, torcedor do Guarani Futebol Clube, leonino e futuro fundador do Clube dos Procrastinadores Anônimos, não necessariamente nesta ordem.

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Pense Nisso! Alexandre Inagaki

Alexandre Inagaki é jornalista e consultor de comunicação em mídias digitais. É japaraguaio, cínico cênico. torcedor do Guarani Futebol Clube e futuro fundador do Clube dos Procrastinadores Anônimos. Já plantou semente de feijão em algodão, criou um tamagotchi (que acabou morrendo de fome) e mantém este blog. Luta para ser considerado mais do que um rosto bonitinho e não leva a sério pessoas que falam de si mesmas na terceira pessoa.

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